quinta-feira, 12 de maio de 2016

AQUELE PRETO VELHO



Mais uma vez refletindo sobre o relevo da cultura e do povo africano em nossas vidas mostro aqui meu profundo apreço pela cultura afro-brasileira na minha vida como na de todos os brasileiros. Creio que além da descendência, temos nossas lembranças  de alguma pessoa ou fato como esse que aqui  relato provando que não é só um dia que temos de consciência negra mas uma eternidade para aqueles que fazem diferença
 Ressalvo ainda que o texto foi escrito quando eu tinha 15 anos e cursava a 3ª série ginasial na Escola Normal de Sacramento Minas Gerais, a pedido da professora de Português Dona Corina Novelino.
 
 
 
Eu me lembro...Era pequena e viajava com meu pai, minha mãe que acabara de adoecer (era assim que diziam naquela época quando uma mulher dava a luz) e meus três irmãos Ruth, Maria e João o bebê recém-nascido.
Saímos de Sacramento da casa da vovó Genuína e do vovô Brasilino em direção á Tapira. Sempre passávamos por Araxá onde fazíamos pouso na casa do Tio Prudentinho, mas daquela vez apeamos da jardineira no meio do caminho numa porteira logo depois de passar pela vendinha do Tio Orozino chamada “Alpercatas”. Era o fim da viajem de jardineira pra pegar uma rabeira (carona) de um caminhão da Prefeitura que chegaria até Tapira, cidadezinha onde posaríamos na “Pensão da Tia Aparecida” pra no outro dia seguir viajem á cavalo até a fazenda “Pontes” onde morávamos e que minha mãe a chamava de Cafundó.
 Enquanto o caminhão não chegava, bateu aquela fome costumeira dos viajantes chegando a hora da matula. Papai tirou do embornal um pão sovado muito gostoso e repartiu com todos nós. Era o” pão do céu”, naquela época num tinha coisa mais gostosa do que comer um pedaço de pão sovado da Padaria do Qüinto lá de Sacramento. Todos comiam satisfeitos, menos eu que acabara de perder o colo ou cair do galho como diziam. Chorona como sempre recusava comer o pão puro sem café.Papai falava que num tinha café ali naquele lugar desértico mas de nada adiantava suas explicações e a birra foi feia, até que de repente calei, porque vi um homem lá longe arrumando os mourões da cerca de arame farpado. Um silêncio...E as lágrimas salgadas escorriam pela minha boca  e enquanto lambia falei :
-”Pai aquele homem lá tem café!”.
Meu pai olhou e perguntou como é que eu sabia que ele tinha café?
Eu simplesmente respondi que estava na garrafinha da algibeira de trás da calça dele. Mas meu pai não me levou a sério e recusou ir até aquele homem pra pedir café. Dai o berreiro foi maior porque, eu sabendo que o café estava ali tão perto, num parei de chorar até que ele se deu por vencido e rumou pra aquela cerca. Seguramente segui ele que tentando me convencer dizia que o homem já tinha colocado a boca naquela garrafinha, que ele era um preto e se eu num teria nojo de beber o café dele. De nada adiantou as alegações de meu pai e fomos andando pelo capim à dentro até que chegamos no mourão onde estava aquele homem.
 Ele virado de costas pra nós, por isso eu vi a garrafinha de café na algibeira dele. Ao ouvir nossas pisadas no capim, virou-se e cumprimentou a gente tirando seu chapéu de palha ,balançando a cabeça pra baixo com um pito aceso no canto da boca. Papai ainda me falou baixinho assim:
”-Viu ele é um preto!”.
Mas eu nem me importei com a cor do homem, o que eu queria era o café.
Chegamos mais perto dele que ria como que satisfeito com a nossa presença, era uma risada que vinha de dentro, um pouco rouca, inesquecível. E enquanto papai explicava o motivo do meu chororô pelo pão molhado com café, ele como que já sabia, já foi tirando a garrafinha da algibeira, puxou a tampa de palha e ainda rindo despejou o café no miolo do pão que meu pai tinha na mão.
Depois os dois prosearam um pouco, enquanto isso eu comia aquilo como se fosse o manjar dos Deuses ou o pão do céu.
 Aquele preto até poderia até  ser jovem, mas para uma criança como eu que tinha apenas quatro anos, me pareceu ser velho como meu pai. E assim, a imagem dele nunca saiu da  minha memória como "aquele Preto Velho” do mourão da cerca de arame farpado no meio do  campo verde,  perto da porteira, de chapéu de palha na Cabeça, pito aceso no canto da boca e rindo docilmente, guardando sua garrafinha de café na algibeira.