Mais uma vez refletindo sobre o relevo da
cultura e do povo africano em nossas vidas mostro aqui meu profundo apreço pela
cultura afro-brasileira na minha vida como na de todos os brasileiros. Creio
que além da descendência, temos nossas lembranças de alguma pessoa ou fato como esse que
aqui relato provando que não é só um dia
que temos de consciência negra mas uma eternidade para aqueles que fazem
diferença
Ressalvo ainda que o texto foi escrito quando eu tinha 15 anos e cursava a 3ª série ginasial na Escola Normal de Sacramento Minas Gerais, a pedido da professora de Português Dona Corina Novelino.
Eu me lembro...Era pequena e viajava com meu pai,
minha mãe que acabara de adoecer (era assim que diziam naquela época quando uma
mulher dava a luz) e meus três irmãos Ruth, Maria e João o bebê recém-nascido.
Saímos de Sacramento da casa da vovó Genuína e do vovô Brasilino em direção á
Tapira. Sempre passávamos por Araxá onde fazíamos pouso na casa do Tio
Prudentinho, mas daquela vez apeamos da jardineira no meio do caminho numa
porteira logo depois de passar pela vendinha do Tio Orozino chamada “Alpercatas”.
Era o fim da viajem de jardineira pra pegar uma rabeira (carona) de um caminhão da
Prefeitura que chegaria até Tapira, cidadezinha onde posaríamos na “Pensão da
Tia Aparecida” pra no outro dia seguir viajem á cavalo até a fazenda “Pontes”
onde morávamos e que minha mãe a chamava de Cafundó.
Enquanto o caminhão não
chegava, bateu aquela fome costumeira dos viajantes chegando a hora da matula. Papai
tirou do embornal um pão sovado muito gostoso e repartiu com todos nós. Era o”
pão do céu”, naquela época num tinha coisa mais gostosa do que comer um pedaço
de pão sovado da Padaria do Qüinto lá de Sacramento. Todos comiam satisfeitos,
menos eu que acabara de perder o colo ou cair do galho como diziam. Chorona como
sempre recusava comer o pão puro sem café.Papai falava que num tinha café ali
naquele lugar desértico mas de nada adiantava suas explicações e a birra foi
feia, até que de repente calei, porque vi um homem lá longe arrumando os
mourões da cerca de arame farpado. Um silêncio...E as lágrimas salgadas escorriam
pela minha boca e enquanto lambia falei
:
-”Pai aquele homem lá tem café!”.
Meu pai olhou e perguntou como é que eu
sabia que ele tinha café?
Eu simplesmente respondi que estava na garrafinha da
algibeira de trás da calça dele. Mas meu pai não me levou a sério e recusou ir até
aquele homem pra pedir café. Dai o berreiro foi maior porque, eu sabendo que o café
estava ali tão perto, num parei de chorar até que ele se deu por vencido e
rumou pra aquela cerca. Seguramente segui ele que tentando me convencer
dizia que o homem já tinha colocado a boca naquela garrafinha, que ele era um
preto e se eu num teria nojo de beber o café dele. De nada adiantou as
alegações de meu pai e fomos andando pelo capim à dentro até que chegamos no mourão onde estava aquele
homem.
Ele virado de costas pra nós, por isso eu vi a garrafinha de café na algibeira
dele. Ao ouvir nossas pisadas no capim, virou-se e cumprimentou a gente tirando
seu chapéu de palha ,balançando a cabeça pra baixo com um pito aceso no canto
da boca. Papai ainda me falou baixinho assim:
”-Viu ele é um preto!”.
Mas eu
nem me importei com a cor do homem, o que eu queria era o café.
Chegamos mais
perto dele que ria como que satisfeito com a nossa presença, era uma risada que vinha de dentro, um pouco rouca, inesquecível. E enquanto papai
explicava o motivo do meu chororô pelo pão molhado com café, ele como que já sabia, já foi tirando
a garrafinha da algibeira, puxou a tampa de palha e ainda rindo despejou o café
no miolo do pão que meu pai tinha na mão.
Depois os dois prosearam um pouco, enquanto isso
eu comia aquilo como se fosse o manjar dos Deuses ou o pão do céu.
Aquele preto até poderia até ser
jovem, mas para uma criança como eu que tinha apenas quatro anos, me pareceu
ser velho como meu pai. E assim, a imagem dele nunca saiu da minha memória como "aquele Preto Velho” do
mourão da cerca de arame farpado no meio do campo verde,
perto da porteira, de chapéu de palha na Cabeça, pito aceso no canto da
boca e rindo docilmente, guardando sua garrafinha de café na algibeira.